terça-feira, 18 de setembro de 2012

politica e honestidade


Politica e Honestidade
Simon Schwartzman
publicado no Jornal da Tarde, 28 de outubro de 1982

Houve um tempo em que boa parte do debate politico no Brasil era feito em termos da honestidade e integridade versus desonestidade e falta de princípios dos homens públicos. Agora, o tema parece voltar à tona, depois de ter, aparentemente, "saído de moda" por muitos anos. Do lado da honestidade estavam, em uma ponta, os que defendiam a integridade pessoal, as mãos limpas e o comportamento impecável como as virtudes máximas dos políticos, das quais decorreriam. as demais qualidades. Os representantes mais famosos desta linha foram as chamadas "vestais" da antiga UDN, substituídas depois pela vassoura carismática de Jânio. Na outra ponta da integridade militavam os defensores da inteireza ideológica, que não admitiam acordos ou compromissos com princípios e estavam dispostos a ir até o fim por suas idéias. 

O que parece ter tirado de moda a honestidade e a integridade foi a demonstração prática de que a honestidade pessoal e a pureza de princípios não são garantia de política eficaz ou governo competente, e nem mesmo barreiras eficazes à corrupção. A antiga "banda de música" levou água ao moinho do autoritarismo, que não se mostrou menos infenso à corrupção do que regimes anteriores; e o radicalismo ideológico, à direita como à esquerda, levou a um beco sem saída atrás de outro, muitas vezes com o custo das próprias vidas dos que nele se lançaram, ou gerando aventureirismos totalmente impensáveis em termos dos princípios que lhes deram origem. 

"Queimadas" a honestidade e a coerência de princípios, restou o realismo do curto prazo, o cinismo do "rouba mas faz", o pragmatismo das alianças e conluios oportunistas O resultado só pode ser desastroso. Despida de um conteúdo moral e ético, a atividade política já tão esvaziada nós últimos 20 anos, perde ainda mais sua legitimidade e suas funções. Se as eleições "provocam" a inflação, se os recursos públicos são malbaratados para eleger políticos sem princípios, se as próprias oposições se prestam a conluios e acomodações de toda ordem - então parece que têm razão os que dizem que a política é inútil e enganosa, devendo ser substituída pela competência e honestidade dos técnicos, administradores, cientistas e militares. Com o fracasso das experiências autoritárias, no entanto, esta visão também é insustentável, o que traz algum alento à política eleitoral. Mas é um alento débil, prenunciando um circulo vicioso para o qual parece difícil vislumbrar uma saída. 

É possível pelo menos tentar esclarecer melhor a questão. Independentemente de seu valor subjetivo e moral, existe um valor social óbvio no comportamento honesto e coerente com princípios. O bicheiro e o contrabandista interessados em manter seus clientes asseguram que os prémios serão pagos e que o whisky não é falsificado. As lojas interessadas em vender bem garantem a qualidade de seus produtos, e os profissionais, os padrões dos serviços que prestam. Por que os políticos não podem fazer a mesma coisa? 

O fato é que o contrabandista ocasional não é tão confiável quanto o já estabelecido, da mesma forma que produtos sem nome na praça têm qualidade mais questionável. O que a honestidade garante é a previsibilidade de comportamento das partes envolvidas em uma relação qualquer que dure no tempo. Inversamente, o que estimula a desonestidade é a falta de princípios, de um ponto de vista externo, mas a instabilidade das situações. Se existe um sistema político estável e permanente, isto faz com que exista um ganho para o político em ser coerente com o que diz aos seus eleitores e com o que faz quando eleito. Inversamente, se as eleições são um evento único, onde se joga o grande destino da nação (ou dos políticos), então a luta é de morte, os fins justificam os meios, e qualquer aderência mais rígida a princípios não passa de um desprezível moralismo ingênuo e pequeno burguês. 

Um dos fatores que estimula a falta de princípios na política é, pois, seu caráter instável e aleatório, que faz com que só o grande golpe ou o sucesso instantâneo justifiquem o investimento de muitos na vida político-partidária. Um outro fator é uma concepção absolutizante e totalitária da vida política, que caracteriza o envolvimento partidário de muitos grupos mais intelectualizados. Nesta perspectiva, todas as questões - do controle da inflação ao funcionamento das escolas, da liberação feminina à violência urbana - passam exclusivamente pêlo poder político, que hoje tem, como possível porta de entrada, o processo eleitoral. Trata-se de uma concepção evidentemente equivocada das coisas, já que não é realista, e nem séria desejável, concentrar nas agências políticas e governamentais o encaminhamento único destas e de tantas outras questões, às expensas de outras formas de participação social. A consequência desta absolutização da política é a introdução da política partidária em todos os rincões da vida social, que vão um a um perdendo sua especificidade como domínios sociais relativamente autônomos, dotados de normas de comportamento e convivência próprios, e sendo devorados pelo vértigo da competição política imediata. É óbvio que, a partir de uma visão destas, qualquer forma de participação quê não seja político-partidária perde legitimidade - e o resultado é que, para obter tão grandes fins, os meios parecem importar pouco. 

A restauração da honestidade e da moralidade na vida política parece requerer pelo menos duas condições. A primeira é que a atividade político-partidária se transforme em um evento regular, previsível e repetitivo, que dê ensejo ao estabelecimento de carreiras públicas baseadas no prestígio, na coerência e na previsibilidade da ação dos lideres políticos. A segunda, paradoxalmente, é que a atividade político-partidária, e a luta pêlo poder político de uma maneira geral, percam um pouco da importância absoluta que geralmente lhes é atribuida. Se existem outras coisas importantes além do poder, outras formas de participação e ação social que não passam pelos órgãos legislativos e executivos, então é possível que a vida político-partidária ganhe um pouco mais de estabilidade, e, desta forma, mais respeitabilidade. A consequência, se isto fosse possível, seria uma recuperação progressiva do prestigio e da legitimidade da vida política, e o aumento de sua importância e escopo de atuação. 

Mas isto não é suficiente. Uma boa parte da atividade política consiste, exatamente, em estabelecer quais questões podem ou devem ser disputadas na arena político-partidária, que recursos são ou não legítimos nestas disputas, e quais são as regras do jogo. Não existe um código de princípios prévio pelo qual os políticos possam se guiar e serem aferidos, a não ser em termos vagos e genéricos. O papel da liderança política consiste, exatamente, em propor e defender as normas mais apropriadas de ação política, realizando uma combinação entre as normas abstratas de uma ética de princípios e uma ética de responsabilidade pelas conseqüências da ação. 

Como bem observava Max Weber em seu texto clássico sobre a política como vocação, existe algo de genuinamente humano e comovente nesta capacidade do homem maduro de assumir a responsabilidade por seus atos e fazer disto um princípio central de sua ação pública. Só a combinação deste tipo de ética pessoal com as condições externas que possam favorece-la - e uma, evidentemente, ajuda à outra - é que pode, a longo prazo, recuperar para a vida política a dignidade quê ela merece e a verdadeira importância que ela pode . ter. A opção é de cada um. 

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